“Net zero” é um engodo e uma armadilha perigosa

Poluição saindo de chaminés de fábrica sugere contraponto ao net zezro
A melhor forma de obter cortes drásticos nas emissões de gases de efeito estufa é através da promulgação de políticas públicas que imponham taxas a quem emite carbono. Foto: Juergen/Pixabay.

No final dos anos de 1980, quando James Hansen – um administrador da NASA – mostrou em seu depoimento no Congresso Americano evidências de que o planeta estava aquecendo de forma perigosa e em decorrência da ação humana, o mundo acordou para as consequências nefastas do aquecimento global. O depoimento de Hansen abriu caminho para que anos mais tarde a ideia de “net zero” fosse disseminada sem a real noção da cilada perigosa que se tornara. Este post vai explicar porque o “net zero” é um engodo e uma armadilha perigosa para o aquecimento global e para a sustentabilidade de nosso planeta.

Por que “net zero” é um engodo

De forma geral e simplificada, “net zero” significa que as emissões de gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera terrestre (como o CO2, metano e os óxidos nitrosos, só para citar os principais) devem ser reduzidas ao máximo possível, ao passo que as emissões residuais devem ser retiradas por tecnologias de sequestro de carbono para que, então, suas emissões líquidas sejam iguais a zero – ou seja, net zero, conceito já explicado em outro post aqui.

A partir de tal premissa, criou-se a expectativa de que emissões “net zero” possam ser atingidas em 2050. Acontece que colocar o mundo no caminho para emissões net pelos próximos 28 anos exigirá investimentos anuais em projetos de energia limpa e infraestrutura da ordem de $ 4 trilhões de dólares americanos até 2030, de acordo com o relatório World Energy Outlook 2021, publicado pela International Energy Agency (IEA, 2021).

Além do alto custo inerente aos processos tecnológicos, tecnologias para fazer a remoção de GEEs da atmosfera ainda não foram comprovadas em larga escala. Contudo, de acordo com publicação de Hanks (2021), elas estão sendo cada vez mais consideradas em planos de redução de emissões!

Ao mesmo tempo, métodos para contabilizar o sequestro de GEEs tampouco são confiáveis, visto que a neutralidade de carbono não se dá pelo raciocínio corrente de que uma tonelada de carbono removido da atmosfera equivalha a uma tonelada de carbono emitido, conforme artigo de José Eli da Veiga, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.

Fora a falta de comprovação tecnológica em larga escala e eficácia dos métodos, ainda há controvérsias sobre como os países conseguirão atingir a meta de emissões net zero; se um país conseguir a neutralidade de carbono, mas continuar comprando produtos de outros países que ainda emitem carbono, o esforço para ser carbono neutro precisa ser reavaliado (BBC, 2021).

Algumas das tendências contrárias aos pressupostos desejados pelos países para que possam se tornar net zero são elencadas pela IEA em seu relatório; as principais são mencionadas a seguir:

  • A contínua expansão das renováveis não tem sido suficiente para compensar o aumento dos combustíveis fósseis para atender o crescimento da demanda de eletricidade (IEA, 2021, p.198)
  • A demanda por petróleo aumentará em dez anos: passará de 2,5 milhões de barris por dia (mb/d) para 15 mb/d entre 2020 e 2030 (IEA, 2021, p.217)
  • A demanda por carvão aumentará nas economias em desenvolvimento, principalmente no continente asiático, apesar do declínio nas economias avançadas (IEA, 2021, p.240)
Perfuração de petróleo alimenta a crença de que net zero é um engodo.
Exploração de petróleo. Foto: David Thielen/Unsplash.

Diante de tal cenário adverso de combate às mudanças climáticas, fica difícil imaginar que a meta de emissões net zero possa ser alcançada em 2050, conforme expectativas e hipóteses construídas até o momento, uma vez que a demanda por energia fóssil tende a aumentar nos países em desenvolvimento, sobretudo na China, maior emissor de GEEs.

Aliás, de acordo com artigo da Reuters, a China está construindo na região leste do país os maiores reservatórios do mundo para armazenamento de gás natural, combustível de origem fóssil, com previsão de conclusão prevista para 2023.

Neste sentido, se a meta é chegar a emissões net zero em 2050, a lógica então seria que os países fossem gradativamente se livrando dos combustíveis fósseis, principalmente os que mais poluem. Os recentes investimentos chineses em gás natural sugerem que o país pode estar numa rota indesejável para combater as mudanças climáticas.

Por que “net zero” representa uma armadilha perigosa

Os arquitetos do conceito “net zero” dizem em um artigo publicado no ano passado que não há nada de errado em querer remover o CO2 da atmosfera. Segundo eles, os problemas aparecem quando existe a suposição de que o sequestro de carbono pode ser feito em larga escala, o que equivale a dar um aval para que a queima de combustíveis fósseis continue aumentando e a destruição de nosso habitat continue acelerando (Dyke et al., 2021).

Para os autores do artigo, plantar infinitas fileiras de monoculturas de rápido crescimento ou outras culturas bioenergéticas (como a cana-de-açúcar ou o óleo de palma) para serem colhidas em intervalos frequentes, representa a devastação da biodiversidade. Sem contar que o cultivo de bilhões de árvores consumiria grandes quantidades de água – já escassa em alguns lugares do planeta, dizem eles.

Existe a estimativa de que a captura e armazenamento de carbono por meio da bioenergia demandaria até 1,2 bilhão de hectares de terra – o que atualmente representa de 25–80% de toda a área em cultivo e que será usada para alimentar de 8–10 bilhões de pessoas até os meados do século (Dyke et al., 2021). Como isso seria alcançado sem que houvesse a destruição da vegetação nativa e da biodiversidade, ponderam os autores.

E o artigo ainda sugere que o aumento da cobertura florestal em latitudes mais altas pode resultar em mais aquecimento, uma vez que substituir pastagens e campos por florestas faz a superfície terrestre escurecer ainda mais – e quanto mais escura ela fica, mais energia do sol ela absorve e mais aumenta a temperatura (Dyke et al., 2021).

Se a temperatura média global está fadada a continuar aumentando em função do avanço contínuo das emissões de GEEs e por conta das limitações dos métodos e tecnologias considerados (incluindo algumas não mencionadas aqui, como a captura direta de ar e a geoengenharia), então como resolver o problema do aquecimento global?

O que deve ser feito para conseguir emissões “net zero”

Nas palavras dos próprios arquitetos do conceito “net zero”, a única forma de manter a humanidade no caminho seguro é cortar as emissões de GEEs de forma imediata, radical e sustentada – não esquecendo de que o corte também precisa ser feito de maneira socialmente justa (Dyke et al., 2021).

“Chegou a hora de expressar nossos medos e ser honesto com a sociedade de uma forma mais ampla. As políticas atuais de net zero não manterão o aquecimento global dentro de 1,5 °C porque esta nunca foi a intenção. Elas foram e ainda são impulsionadas pela necessidade de proteger os negócios como de costume [business as usual], não o clima. Se quisermos manter as pessoas seguras, então as emissões de carbono precisam sofrer cortes drásticos e sustentados imediatamente. O momento para pensamento positivo acabou.”

James Dyke, Robert Watson, Wolfgang Knorr

Neste sentido, a melhor forma de obter cortes drásticos nas emissões de GEEs é através da promulgação de políticas públicas que imponham taxas a quem emite carbono.

José Eli da Veiga (da USP) e Fareed Zakaria (da CNN americana) corroboram com tal premissa. O primeiro sugere que “está mais do que na hora de seguir o exemplo da União Europeia, começando pela taxação das emissões de carbono, inclusive de produtos importados”. O segundo diz em um vídeo que “praticamente todos os economistas concordam que um imposto sobre o carbono é a melhor estratégia para começar a resolver a crise climática”. Veja o artigo sobre o vídeo de Zakaria.

Medidas como a taxação de carbono podem enfrentar forte resistência por parte de setores que se posicionam de forma contrária. Entretanto, para o bem de nossa própria saúde e da saúde de nosso planeta, é imperativo que todos aqueles que apoiam tal medida – governos e políticos – tenham o respaldo da população para que possam quebrar a dinâmica do business as usual e colocar em prática uma lei que taxe o carbono de quem o lançar na atmosfera.

Referências

BBC. What is net zero and how are the UK and other countries doing? 2021.

Dyke, J.; Watson, R.; Knorr, W. Climate scientists: concept of net zero is a dangerous trap. The Conversation. 2021.

Hanks, O. Not zero: why we should be wary of ‘net zero’ climate targets. 2021.

IEA – International Energy Agency. World Energy Outlook 2021. 2021.

Reuters. China CNOOC to add giant new tanks at LNG terminal by end-2023. 2022.

Veiga, J.E. Não existe “net zero”. 2021.

Zakaria, F. Why we need a carbon tax. CNN. GPS. Last Look.

Sobre o autor | Fernando Oliveira

Foto Fernando


Fernando é o fundador e editor da Sustenare. Ele é administrador de empresas, cientista da computação e doutor em energia pela Universidade de São Paulo (USP). Fernando morou nos Estados Unidos por dez anos, país onde cursou universidade e trabalhou por igual período para empresas de tecnologia e do ramo editorial.

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